sábado, 2 de fevereiro de 2008

Cordas de aço

- Estou voltando a me encontrar na vida.
- Tava perdido?
- Andei me perdendo.
- Como alguém pode perder a si mesmo, né?
- É mais fácil que perder alguém.
- Não exagere.
- Não é nenhum exagero.
- Por que tu te perdeu?
- Quis esquecer algo...
- E esqueceu?
- Digamos que sim. Mas acabei esquecendo de outras coisas junto.
- E por que queria esquecer?
- Porque sangrava.
- Sangramentos não duram muito, estancam.
- Estancam se alguém estancá-lo. Até lá ele segue jorrando.
- Hm... Então tu não quis estancar...
- É preciso coragem para colocar as mãos sob uma ferida. Só de aproximar os dedos, já começa a doer mais.
- Cagão.
- Deixa eu te fazer um corte à altura do rim, e vamos ver se tu estanca-o sozinho.
- Mas isso é apenas uma metáfora, a tua dor não era física, e muito menos um corte no rim.
- Não, era no pulmão.
- ?
- Um corte no pulmão reduz a freqüência respiratória, altera a freqüência cardíaca, e com isso altera todo o resto. Tive pneumo-tórax.
- Ah, desculpa. Achei que estava falando de algo emocional, de forma poética.
- Estou mesmo. Mas eu tive pneumo-tórax de verdade, por isso fiz a analogia.
- Bem, e qual foi a tua dor emocional?
- Olha, enquanto fiquei no hospital tive algumas experiências apavorantes. Fui acordado no meio da madrugada para uma segunda cirurgia, estive na UTI, vi cenas chocantes. Fiquei sozinho... Senti muita dor. Mas li duas vezes um mesmo livro, aprendi a importância de certas pessoas, aprendi a importância da saúde e fiquei mais sensível do que eu era.
- E...?
- As experiências apavorantes do hospital eu não carrego mais na bagagem. Só trouxe as coisas leves.
- Mas qual era tua dor emocional?
- Não importa mais.
- Por que?
- Tirei da bagagem.
- Mas isso não é o mesmo que esquecer?
- Não. Para tirar, eu tive que abrir a mala, colocar as mãos naquilo que não queria mais carregar.
- Isso não dói tanto quanto estancar uma ferida no rim.
- Imagine que seja uma bola de boliche a 250 graus.
- Doeria. Por isso teus dedos estão marcados, é? Hehe.
- Não. É que voltei a tocar violão. Com cordas de aço.

2 comentários:

Mari ☮ disse...

Até aqui, esse dialogo é o meu preerido. Adorei.

E... Trate de se acostumar com as cordas de aço pra gravar Um pequeno imprevisto pra Mari! :)

=***

Marianna Rodrigues disse...

Rato, já pensou em escrever um livro? Se fosse comparar com teus diálogos, iria ler trocentas vezes.