segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O Banheiro...

Big Brother. O Grande Irmão. Os olhos onipresentes que tudo observam e tudo julgam com a fúria de seu crivo. O intocável, infalível, irrevolucionável, o incontornável sistema que tudo abraça e tudo mantém nas linhas de seu destino programado. O beco sem saída... Sem saída?

Isolados em uma mansão quase luxuosa, um grupo de pessoas contracena a novela da vida real. Incapazes de se comunicar sem que o Big Brother esteja observando-os, são obrigados a interagir com o jogo sem qualquer escapatória, sem que tenham tempo de ensaiar qualquer coisa. Não são donos do próprio destino. Estão à mercê do Grande Irmão.

Menos no banheiro.

Na literatura política de George Orwell, "1984", existiam pontos cegos que o Big Brother não poderia alcançar. Por que seria diferente na mansão inspirada nesta obra? No banheiro, as câmeras não entram. No banheiro, o Grande Irmão não existe.


- Pega uma cerveja pra mim?
- Saindo uma cervejinha bem gelada...
- Ai! Não joga, eu detesto que joguem as coisas pra mim.
- Por que? É só pegar!
- Mas eu tenho medo de não pegar, oras. Se fosse uma caneta, tudo bem... Mas é uma cerveja.
- Hehe, tá certo, cerveja não pode cair... E se eu te jogasse meu coração?
- Nem tento pegar, vai direto...
- Que isso, Rita?!
- To brincando, fofinho.
- Além disso, canetas podem estourar se cairem no chão.
- Hum?
- Você disse antes, que tudo bem se tivesse jogado uma caneta. Mas pode estourar.
- É... Sabe como eu me sinto aqui às vezes? Como se tivesse tendo de escrever uma carta com uma caneta estourada. Sabe, você quer escrever com traços finos, mas ela esbanja tinta e faz traços grossos demais para formarem palavras. Às vezes eu sinto que não consigo ser quem sou aqui, tudo que tento fazer se torna uma palavra borrada. As câmer...
- Ei.
- ...
- Fica calma.

- Vocês dois, não vão voltar pra festa?
- Eu vou. Essa musica é demais! Depois a gente se fala.
- Rita, que foi amiga?
- Nada não...
- Não mente pra mim, to vendo nos teus olhos. Vai, me conta, o que foi?
- Eu estou sufocada por uma sensação estranha, parece que nós somos marionetes controladas por mãos que sequer conhecemos. Estamos sob risco de criarmos inimizades entre nós, passarmos por situações de debilidade emocional, colocamos nosso próprio corpo à prova por horas a fio, e quem decide nosso destino não está aqui. Sabe, as câmer...
- Amiga!
- Eu sei, desculpa.
- Só precisa ficar calma, tá bom? Vai, muda de assunto. Você acha o Ígor bonito? Eu acho ele lindo, muito charmoso.
- É, simpático, parece boa pessoa.
- Boa pessoa? É pessoa boa! Hehe...
- Renata, tu tens cotonete?
- Tenho sim, ali no quarto. Quer?
- Agradeço, tô com uma coceira no ouvido.
- Ai amiga, coça com uma tampa de caneta!
- Isso é anti higiênico.
- Tá bom, vou ali pegar pra você.

- Caneta...

- Pronto, coça o ouvido com higiene agora hehe...
- Obrigada, Rê. Escuta, não existem canetas na casa, não é?
- Não. Eu tinha algumas na mala, mas a produção disse que não podia. Quer escrever uma carta pra alguém? Ah, desculpa, esqueci que o carteiro não passa aqui! Hahaha!
- É... Olha, a cerveja quer sair. Vou no banheiro, já volto.


Não sei se foi o efeito da cerveja, ou crise de estress aguda, mas Rita desabou em lágrimas sentada no vaso sanitário. Ao menos ali ela poderia ser pateticamente instintiva, natural e espontânea. Ali não existiam câmeras. E enquanto aliviava-se da quantidade extra de líquidos, enrolou na mão alguns centímetros de papel higiênico. Suas lágrimas mornas deslizaram sobre as bochechas e dois pingos caíram no papel que empunhava. Formaram a figura de 2 olhos. Olhos que a olhavam, olhos que a observavam. Olhou para a outra mão, e viu que ainda estava com o cotonete emprestado pela amiga.




"Posso escrever, posso escrever! Posso usar o cotonete para escrever no papel higiênico... Talvez dobrando assim, uma, duas... três vezes! Nunca pensei que um cotonete molhado poderia ter tanto valor"

Rita decidiu rebelar-se contra as câmeras. As câmeras que ousaram impedi-los de agirem como pessoas naturais que eram antes de entrar naquela mansão. Escrevendo no papel higiênico, poderia comunicar-se com os outros participantes. Poderiam combinar quem venceria as batalhas, sem terem de se submeter verdadeiramente às violentas provas do jogo. Talvez pudessem melhorar sua própria situação se o prêmio do jogo deixasse de ser exclusividade de 1 só pessoa. Talvez pudessem pular da situação de cobaias para o cargo de atores. Atores da vida real imaginária. Talvez pudessem...



"Porra! Isso aqui é ridiculo. Estamos lutando como vermes por um pedaço de carne. É o que o sistema quer, é o que as câmeras querem! Querem nos ver pateticamente fragilizados na busca de um pedaço de carne, que poderíamos dividir e acabar com o jogo! Mas se escrever no papel higiênico, preciso de sorte para que alguém leia antes que a marca de água seque. Não posso depender da sorte, preciso de algo colorido. Ah, bendita cerveja! Bendita urina."








Em apenas 3 dias, todos os participantes estavam cientes da nova situação. Todos eles entravam com um cotonete escondido na roupa íntima, e concordaram em dividir igualmente a premiação final. Eram os donos do jogo. Viraram a mesa e transformaram as câmeras em meras coadjuvantes. Todos os dias criariam seus próprios scripts através do papel higiênico. Quem vai chorar hoje? Quem será indicado ao paredão? Cuidado para não dar bandeira, fulano tem que brigar com ciclana hoje à noite. Nada de revelar que ali não existiam mais animais em busca de um pedaço de carne. O Grande irmão precisa acreditar na sua obra...


Mas, o ultimo comentário do rolo de papel, dizia:
- Estou fora disso. Não dividirei nada. Ass: Marcus.




- Eu voto no Marcus, porque eu quis fazer sexo com ele e ele não quis, disse que era fiel à namorada.

- Voto no Marcus! Caramba pô, ele quer que a gente abaixe o volume do som na festa? Acho que tá na hora dele ir pra casa.

- Voto no Marcus. Ele falou que quem está atrás da TV vendo a gente, é vagabundo desocupado. Acho que o povo merece mais respeito. Valeu Brasil!






Marcus foi eliminado com 84% dos votos.

4 comentários:

Unknown disse...

parabens rato
muito bom seus textos e seus videos

Anônimo disse...

Nossa cara, muito bom.

M. disse...

Legal, mas acho que tem câmera no banheiro também hehehe

beijos
www.outroblogdamary.com

Fernando Rato disse...

Maria, ter tem. Mas são câmeras desativadas, que só são acionadas se entrarem 2 pessoas juntas (proibido pelo regulamento) ou em situação de clara insalubridade (tipo, se a pessoa estiver passando mal, etc).


:)